Foto por: Alisson Demetrio

Com maturidade artística evidente, Mottus faz debute e mostra que foi a primeira de muitas novas edições

Sempre vai me chamar a atenção a forma como a ARCA trabalha seus acessos. Já contei pra vocês aqui sobre isso, mas reitero: o tempo entre descer de um Uber e estar no meio da pista de dança é de, com azar, 5 minutos. Isso não é comum, mas deve ser sempre celebrado, bem como a sempre ostensiva presença de funcionários atenciosos e educados nas catracas e conferência de documentação. Dito isso, vamos relembrar como foi o debute da mottus, evento autoral da M-S Live

Era uma noite de configuração pouco usual para quem está acostumado com a ARCA. A área VIP estava montada ao fundo do gigantesco galpão, rememorando tempos de Eric Prydz no Brasil. Nas laterais, banheiros que pertencem ao espaço, construídos para oferecer estrutura de qualidade, que em nada lembram os deprimentes químicos montados em eventos. Complementando a aba lateral, dois gigantescos bares patrocinados pela Heineken, cerveja oficial do rolê. O que não faltava era espaço, atendimento e infraestrutura de nível.

Não me ative ainda ao palco propositalmente. Falaremos disso muito em breve. Antes, porém, dedico uma atenção à área de descanso, uma série de pallets almofadados para que as pessoas sentassem, deitassem e se esticassem ao longo da noite – um carinho e tanto para os inevitáveis pés cansados de uma festa que varou a madrugada e deu adeus só quando sol já perpassava pela estrutura de concreto. Foi uma atitude gentil e que muito nos agradou. Que a ARCA mantenha, é gostoso demais.

Vamos falar, enfim, do dono da noite: o palco e suas consequências artísticas. Da área VIP, alguns metros acima do nível da pista, a sensação de profundidade e os traços geometrizados já ganharam a atenção. Vendo de longe, os três cubos lado a lado dispostos, somados ao enorme telão de fundo, com a sutil e inteligente adição de um jogo de luzes nas “paredes e arestas” dos cubos formavam um visual nada convencional, nada comum, e bastante impressionante. Sabe aquele papo de brisa? Se você fixasse o olhar para o show de luzes, ela viria rapidinho. 

Desci para a pista, é lá que as boas histórias são contadas. Havia, com clareza enorme, um público diferente para a noite de shows. Uma concentração de pessoas que parecia pouco apegada ao line-up, sem uma idolatria clara, mas com o interesse pleno na proposta do evento. Claro que Colyn, Booka Shade e Mathame carregam atenção, merecida atenção, mas o headliner da mottus foi o conceito. A ideia de que era um ambiente produzido para aquele fim, para aquele grupo de pessoas, do Brasil para o Brasil. Esse comprometimento foi um competente fio condutor para as horas seguintes. 

É muito interessante (mesmo!) estar presente em um ambiente tão particular. Sejamos cá muito honestos: sempre vamos a um evento com olhos e coração atentos para ao menos uma atração em específico. Posso jurar para vocês que esse não foi o caso. Havia uma evidente simpatia aqui e acolá, como eu tinha com Colyn, mas era consensual que o maior atrativo era conhecer esse visual, essa vibe binária, pouco colorida, pouco barulhenta, e muito conectada. Não à toa, vi poucos celulares apontados, mas muitos pés inquietos pela pista. Nesta noite, a ARCA dançou – à Melodic Techno, mas inevitavelmente dançou. 

Aos artistas: o brasileiro BigFett encontrou um público carinhoso na abertura dos trabalhos. Foi tomado por uma alegria estampada no rosto por estar no comando da pista, e isso divertiu os presentes. Østil elevou o ritmo, fazendo com que a pista ganhasse um clima mais hostil, e entenda corretamente o uso do termo – ele quer se referir às reações, neste momento, mais enérgicas. O ritmo crescente se perpetuou com Booka Shade, que trouxe à mistura a novidade do live, com percussões produzidas ao vivo, dando uma maior maturidade artística à apresentação. Foi um grande show do duo.

Depois, aquele que tomou de assalto o meu coração, foi Colyn. Com um ritmo extremamente intenso, foi quem proporcionou uns chacoalhões na pista de dança, descolando um pouco o clima padrão do melódico e dando um pouco mais de vibração para o programa sonoro. Emocionando com melodias sinceras e agitando com drops ferozes, me convenceu do início ao fim. Foi divertidíssimo assistí-lo, mesmo sendo aquele que menos dedicou-se ao pacote visual que a mottus oferece.

Falando nele, exponho cá meus elogios ao trabalho de teto feito na ARCA. O palco, todo geométrico e com a questão da profundidade trabalhada com cuidado, proporcionou a chance de estender luzes sobre o público com painéis de LED que exibiam os nomes dos DJs, luzes e projeções que se somavam ao telão maior. Era bem bonito de olhar e fazia clarear o ambiente em momentos oportunos, num jogo de claro e escuro muito charmoso e conectado com o que a festa pensa para si.

Fiz um break na noite e repasso ao texto. Faminto, fui em busca de uma comidinha da madrugada. Elogios à pequena, mas funcional área externa da ARCA com foodtrucks. Comi um hambúrguer sincero de R$29,00 – que cumpriu sua função, cobrou bom preço e ficou pronto em 2 minutos. Perdi só o comecinho de Mathame e seu visual show. No retorno à pista, entendi que o duo trazia para a mottus uma sessão de projeções, contando uma história. Ainda que seja uma versão menos impactante do Holo 4.0, é de bom gosto, ótima produção e um som poderoso. 

Com sucessos reconhecidos, a dupla chamou a atenção por tirar do público aquela acapella incomum para as noites de Techno. Tiveram seus sucessos cantados em bom nível, foi bem legal de acompanhar, e não só pra mim, já que eles logo se pronunciaram no Instagram para elogiar a plateia paulistana. O clima agitado permaneceu com Patrice Bäumel, que fechou os trabalhos com um som forte, reto e que prendeu os que resistiram à extensão do evento – ainda que muitos tivessem recorrido aos pallets, os maravilhosos pallets.

Enxergo a mottus como uma joia sendo lapidada e que foi premiada por um público que entendeu, já tão logo, sua maturidade artística. Não é simples emplacar uma nova festa sem apelos tão comerciais, sem um line-up tão radiofônico, sem a força de marcas consagradas. Ser autoral é um desafio imenso e colocar um desses na rua é um ato de força. M-S Live e ARCA saem dessa empreitada com a certeza que podem – e devem – seguir com projetos próprios e que eles podem, com certa velocidade, serem replicados ao redor do mundo. 

A mottus foi pedra na vidraça da comodidade.