A sexta-feira era santa, segundo o calendário brasileiro, e em conformidade à cultura da Igreja Católica. Nunca deixei minha casa em datas como essa, por respeito ao que aprendi nos outros 28 anos além deste, que aqui relato. Não que eu concordasse com um luto eterno, mas existem padrões poderosos. Quando o relógio marcava a hora de almoçar, fui com amigas a um restaurante – o primeiro erro deste assumido pecador.
Lá, resisti à tentação de não consumir carne vermelha, outra das tradições enlutadas que aprendi. Quando estava num agradável brigadeiro, sou avisado por uma das companhias de mesa sobre um artista que tem todo meu amor estar tocando na minha cidade adotada, naquele mesmo horário, de graça, para quem quisesse.
Milagre da ressurreição? Que Deus, meus pais e meus chefes me perdoem, mas foram poucos minutos até que a sacra data fosse tomada por um instinto de celebração e ansiedade por enfim encontrar alguém que esperei por quase três décadas, confessando minha velhice. Trocados e com uma mochila plástica com bebidas de qualidade duvidosa, atravessamos uma silenciosa São Paulo até o centro histórico.
Lá, vimos alguns de nós que estampavam na surpresa a gratidão por presenciar o momento. Qual era a chance de um artista tão grande, um headliner de festival – que custa uma cesta básica por ingresso, tocar numa praça, sem estrutura, segurança, pompa e circunstância, num feriado chuvoso? Se eu não tivesse vivido, acharia anedota.
Fato é que ele tocou por seis horas, trouxe amigos, dividiu palco, falou com o pobre, com o rico, com o desconhecido e com o fã, com o conhecedor e com o curioso, apoiou os famosos locais, mas também deu luz – literalmente – para quem talvez nunca viesse a tê-la. Sua CDJ foi a de todos nós, da música dele, da brasileira, da periferia, do festival. Ali, tive um seminário presencial e cru do que é ser artista.
Fiquei maravilhado pela experiência que conto a vocês nove meses depois de tê-la vivido. Assumo a emoção que sinto ao escrever, tamanha a profundidade das sensações. É encantador ver que ainda há quem pense na arte como forma de unir pessoas, de dar uma mãozinha em suas jornadas, de agradar quem não pode bancar com grana, mas que entrega o incomum amor.
Achei ter sido uma rara ocasião, mas dias atrás, na dor cruel de um cancelamento, um irmão do continente resolveu fazer da água, vinho. Criou uma festa em questão de horas, reuniu um verdadeiro escalão de gigantes e deu ingressos ao povo. Sem custo, sem nada. Era só chegar para curar a frustração de um dia que não aconteceu. Pessoas que aguardaram por meses, e que poderiam viver um pesadelo. Ele, ao menos, tentou impedir. Bíblico, eu diria.
Orgulhoso de suas raízes latinas, até hoje chama este dia como o “melhor de todos”. A música, afinal, é feita para isso, não? Temos poucos casos a contar, poucos Skrillex e Gordo para lembrar, poucos Dubdogz e Alok para recomendar. Mas neste pequeno e sincero texto, fazemos questão de agradecer. A cena é transformadora por pessoas como vocês.
Que o exemplo seja seguido mais, e mais, e mais vezes.
E que meu pecado seja perdoado.