Foto por Alisson Demetrio

Uma noite sobre devoção, comprometimento e sorrisos fáceis: Charlotte de Witte na ARCA

A ARCA já se acostumou a receber noites especiais de música eletrônica. Desta vez, vestiu-se com roupas pretas para celebrar o fã de Techno. Era noite de KNTXT, a label party de Charlotte de Witte. Com uma imensa base de fãs, a belga fez o enorme espaço físico na cidade de São Paulo uma grande confraternização entre ilustres desconhecidos unidos por uma causa, com os primeiros sorrisos fáceis.

Quando chegamos, já com a terça se tornando quarta, nos primeiros minutos do feriado, logo observamos que poucos celulares estavam aparentes nas mãos dos muitos que já tomavam conta da pista. Quando Enrico Sangiuliano, a segunda principal atração da noite, subiu no palco, o frisson subiu, mas nada que fizesse câmeras e flash surgirem. O clima era de entrega à música, não aos likes.

Nos últimos meses, o time que escreve este review esteve em vários eventos nesta mesma casa, tão querida pra nós, mas em nenhuma das ocasiões anteriores houve esse clima. Por se tratar de uma “cena” muito dedicada e com representantes claros, as pessoas, a cada passo ou cerveja comprada, se abraçavam, comemoravam a presença de Charlotte, riam juntas e provavam que o Techno é por e para seus adeptos.

Depois de tocar o remix para “The Age of Love”, a track mais popular e ouvida, Enrico passou o comando da festa para a estrela da noite, que também é sua digníssima senhora, em um momento bastante significativo.

Com estafe e público ao redor, Charlotte chegou cedo à beira da CDJ, vestindo uma camiseta preta com a bandeira de São Paulo, e gastou minutos preparando seus equipamentos para tocar. 

Quando acabou, piscou para Sangiuliano, que logo encerrou seu set, agradeceu, empolgado, ao público, e deu um bonito abraço na noiva, derretendo o público – fã de ambos e entusiastas desse amor. Com ela, a temperatura subiu bastante e podemos explicar.

Não fazia calor na ARCA, a noite era gelada na capital paulista, mas a belga chegou para um set muito forte que fez acenos claros ao PsyTrance e a um Techno de BPMs muito elevados, além de desfilar sucessos de sua biblioteca – sem contar vários sorrisos fáceis que ela deixou cair nos primeiros minutos de apresentação.

Sem deixar de mover freneticamente seus pés, que usavam clássicos Chuck Taylor cano médio pretos, por um minuto que fosse, ela olhava para seu estafe de um homem só, brincava, dançava, fazia emulações de moonwalker à Michael Jackson, batia com as mãos contra as esguias pernas, seguia as batidas com os dedos, numa regência discreta dos vários milhares de presentes, que tinham olhos completamente fixados sobre ela, compondo uma cena fascinante de entrega e comprometimento. 

Descemos, então, para a pista, dispostos a ter essa imagem por outro ângulo. Pelos bares – sempre com bom atendimento, agilidade e sem filas, elogio que vocês veem sempre nos reviews que fazemos, porque é uma realidade – compramos alguma dose de álcool e caminhamos até o front, disputado e bastante cheio.

Diferente de quase todos os eventos que reportamos, neste é possível dizer que não disputamos espaço com celulares. Não interessava aos presentes, devotos e conectados, uma grande imagem. Eles demonstraram estar ali em busca de sentimento. 

Com essa impressão forte e muito viva na cabeça, decidimos caminhar ao redor dos longos metros de ARCA em busca de visões interessantes. Até chegarmos ao final, vimos uma série de pessoas sozinhas dançando pra lá e pra cá em absoluto transe, no melhor sentido do termo. Longe do palco, mas completamente encantados com o ambiente, era evidente e fácil sentir, o corpo falava por todos eles.

Nos últimos metros, vimos que havia uma nova área na casa de shows, um lounge de descanso com arquibancada de três níveis, bancos e cadeiras. Um oásis para as pernas, devo dizer.

Por alguns gostosos minutos, ficamos assistindo a tudo por esse ângulo “grande angular”, como se fosse a câmera 0.5x do seu celular. Deu pra notar todo o cuidado da KNTXT em criar um palco bonito, significativo, grande, que estava em diagonal sobre o palco, dando uma dimensão importante ao público.

Deu pra ver, também, como o ambiente fabril guarda similaridades com as raízes do Techno e como tudo isso compunha um ambiente que fazia sentido e explicava o bom clima.

Voltamos, então, à lateral do palco de Charlotte, para assistir a última hora de sua apresentação. Logo de cara, vimos que ela procurava por algo, sem sucesso. Seu estafe de um homem só se agilizou e levou uma caixinha, que logo notamos ter um cigarro com o qual a belga tocou por alguns minutos, misturando a fumaça com a artificialmente criada para dar beleza ao palco.

Depois, tomou uma cerveja enquanto dançava e foi quando seu noivo veio pra perto para dar um beijinho rápido – causando o segundo derretimento ostensivo do público, que pedia descaradamente por “Casa comigo, Charlotte”.

Sua despedida foi sob olhares de um ilustre brasileiro, que chegou discretamente e ficou bem atrás do palco, curtindo o show com um vans nos pés e um boné claro. Lukas (Vintage Culture), a pessoa, se divertiu por algum tempo e deixou o espaço simultaneamente à estrela da companhia, que se despediu com acenos, beijos ao público, muita (mesmo!) celebração com seu fotógrafo, técnicos, amigos, conhecidos e apoiadores. Passou por Acid Asian, o nosso brasileiro que abriu os serviços, e Indira, que fechou a noite, com abraços, sorrisos e festa. 

Deixo parágrafos dedicados à dupla, ao jovem brasileiro que é destaque na produção de Techno e foi muito feliz e competente para começar a noite de KNTXT (e com quem falamos em detalhes, mas que você lerá noutro texto) e à consagrada Indira, que tocou minutos de algo que muito se aproximou do nosso Psytrance, aquele típico das raves nacionais, com uma roupagem de Techno, chegando a uma identidade agradabilíssima capaz de manter cheia a ARCA mesmo já com a luz do dia raiando do lado de fora. Segurou a festa com mãos fortes e grande energia.

Nós, exaustos e famintos, ainda passamos pela parte externa da casa para comer um fortíssimo lanche produzido pelo Bullguer, clássica marca paulistana, em menos de 3 minutos. De barriga cheia e coração ainda mais, nos despedimos da KNTXT com a sensação muito nítida de que a cena do Techno tem uma linha extremamente leal de fãs, que é um ambiente não comparável de devoção e entrega, além de ser uma absoluta reunião de conhecidos e amantes de um bem comum. 

Pena que acabou.