Bring life back to music: Uma análise entre a humanização nas relações e nas músicas de Daft Punk no álbum “Human After All”

A música eletrônica surgiu em um contexto de baixo acesso às tecnologias, mas com o passar do tempo, essa engenharia de som evolui de forma exponencial e, naturalmente, a música foi junto. 

Novos mecanismos tornaram o processo de produção cada vez mais fácil e acessível, isso permitiu que novos talentos e sonoridades surgissem em um espaço em que dificilmente conseguiriam em uma diferente circunstância, e isso é ótimo! Mas até que ponto podemos deixar que a tecnologia faça todo, ou a maior parte, do trabalho por nós? Quais impactos isso tem na riqueza sonora e cultural da cena? 

OS ROBÔS JÁ DIZIAM: APESAR DE TUDO, SOMOS HUMANOS! 

Daft Punk, talvez a dupla de música eletrônica mais famosa de todos os tempos, é muito conhecida por utilizar capacetes de robôs em suas performances e por criar músicas mecanizadas, robóticas, e algumas chegam a parecer quase industriais, e isso tudo tem um significado muito mais profundo do que apenas uma identidade da marca da dupla! 

Às vezes de forma clara, às vezes de forma subliminar: os dois músicos sempre tratam de realizar críticas ou abordam temas delicados presentes na sociedade e nas relações humanas.

E dentre seus álbuns, um dos que mais chama atenção nesse sentido é o “Human After All”, lançado em 2005, onde eles deixam bem clara a ideia de que somos todos humanos individualmente, mas nossa sociedade é robótica. Cada música explora essa ideia de uma maneira diferente. Entenda faixa a faixa:

HUMAN AFTER ALL 

“We are human after all. Much in common after all”

A faixa de número 1, que dá título ao álbum, abre com a seguinte mensagem:  

“Somos humanos, apesar de tudo, muito em comum. apesar de tudo”

Todos temos sentimentos, medos, fraquezas e esperanças, e é essa a ideia que eles tentam transmitir na música, porém, o que chama a atenção, é a forma através da qual ela é apresentada. A repetição do vocoder, a batida robótica e industrial não nos parece muito humano, o que gera um contraste extremo entre a ideia da letra e a música em si, dando o sentido de que apesar de tudo, ainda somos humanos. 

PRIME TIME OF YOUR LIFE

“Gonna do it (now)… don’t wait and; Live it… (today); The prime time of your life”

A princípio, isso soa como uma mensagem positiva. Divirta-se, faça o que quiser. Mas é utilizada a mesma técnica da música anterior: a repetição e a batida fazem a mensagem soar como um comando, e não um conselho amigável. Faça o seu melhor! Nunca perca tempo! A morte está próxima! Você tenta aproveitar ao máximo o seu tempo e nunca pensa no que deseja fazer. A batida acelera até que você não consegue ouvir nenhuma palavra. O humano se transforma em uma máquina. 

ROBOT ROCK

“Rock. Robot Rock”

Essa faixa dá início ao tema da humanização na música, uma composição musical deve ser sobre transmitir sentimentos, ideias e emoções, mas muitas canções parecem ter sido feitas em uma fábrica. Padrões previsíveis, letras pouco inspiradoras e foco no artista em vez da própria música, esse assunto é tratado mais profundamente no próximo álbum da dupla, Random Access Memories. 

STEAM MACHINE

“Steam Machine” 

Mais uma vez, uma voz humana se transformando no som de uma máquina, essa mensagem pode ser aplicada ao local de trabalho, que apesar de estar em constante melhoria comparando com as últimas décadas, ainda é um ambiente mecanizado . As primeiras fábricas utilizavam as máquinas a vapor, e foi isso que deu nome à faixa, e as máquinas humanas faziam um trabalho monótono e repetitivo, assim como as à vapor, assunto muito bem abordado no filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin, 1936. 

MAKE LOVE 

“Make love” 

A mensagem dessa música pode ser interpretada de duas maneiras: uma crítica à maneira como tratamos os relacionamentos e o amor à mídia, mas, por outro lado, soa muito diferente das faixas anteriores, bem mais humanizada, portanto, pode ser uma ruptura do tema para nos lembrar que os sentimentos ainda existem.

THE BRAINWASHER

“I’m the brainwasher” 

Agora a “sociedade” está falando diretamente com o ouvinte. Isso transforma a pressão vaga, criada nas faixas anteriores, em uma ameaça concreta. O orador permanece obscuro e pode ser interpretado como a mídia, governo, artistas ou outras organizações. 

ON / OFF

Esta é uma introdução para a próxima música, é o som de alguém que passa por todos os canais da televisão, mas não encontra nada de interessante e desliga a TV. 

TELEVISION RULES THE NATION

“Television rules the nation” 

Aqui, eles dão uma continuação as duas últimas músicas. Observe que as pessoas, os seres humanos que fabricam a televisão não são mencionadas. Em vez disso, a própria televisão, uma máquina, governa a nação, os programas de TV são estruturados, eles tem regras claras, quase não há espaço para emoções reais, improvisação ou risco. 

TECHNOLOGIC

Aqui, uma voz artificial dá comandos, acreditamos que estamos comandando as máquinas, mas e se elas estiverem nos controlando? Isso é algo que os críticos de mídias sociais, jogos e do uso de meios de comunicação costumam alertar. O que torna essa música impressionante, pois foi feita antes de o Facebook existir. A internet e os computadores já existiam em 2005 e os Robôs viram para onde o desenvolvimento estava indo. 

“Buy it, use it, break it, fix it Trash it, change it, mail, upgrade it”

A tecnologia muda tão rápido, então por que se preocupar em reutilizar as coisas? Basta substituí-los pelo último lançamento! 

“Charge it, point it, zoom it, press it Snap it, work it, quick, erase it”

É assim que você tira uma foto com uma câmera digital ou celular, é tudo muito fácil. Às vezes você realmente não sente um momento porque está ocupado tirando uma foto dele, quantas vezes você já parou durante o show do seu DJ favorito para fazer um registro mas sem realmente se preocupar em viver aquele instante? 

“Write it, cut it, paste it, save it Load it, check it, quick, rewrite it”

Escrever algo costumava ser permanente, agora você sempre pode mudar o que pensou a hora que quiser. 

“Plug it, play it, burn it, rip it drag and drop it, zip, unzip it”

Por que pagar pela música ou esperar pelo lançamento oficial dela quando você pode encontrá-la gratuitamente na internet? 

“Lock it, fill it, call it, find it View it, code it, jam – unlock it”

Ao confiar nossos dados à tecnologia, ficamos vulneráveis ​​a hackers e outros tipos de ataques sem que percebamos. 

“Surf it, scroll it, pause it, click it Cross it, crack it, switch, update it”

Precisamos de cada vez mais conteúdo, todos nós conhecemos a sensação de rolar e rolar, atualizar o site, mas não encontrar realmente algo de que goste. Lembrando mais uma vez que essa música foi escrita no contexto do ano de 2005. 

“Name it, read it, tune it, print it Scan it, send it, fax – rename it Touch it, bring it, pay it, watch it Turn it, leave it, start, format it”

Edição de documentos e imagens: muitos trabalhos criativos, como escritores, editores, músicos ou designers, lidam principalmente com computadores em vez de pessoas. 

“TECHNOLOGIC” 

Os humanos se tornam tecnológicos.

EMOTION

Nessa última faixa do álbum, o que escrevemos sobre “Make Love” também se aplica aqui. Embora seja repetitivo, parece humano, não há letras, apenas emoção. A música faz você sentir algo sem dizer nada, você nunca vai ouvir essa música no rádio ou na televisão, você não pode digitalizar o que torna essa música especial. É a sensação que você tem ao ouvi-la.

TRAGA VIDA DE VOLTA À MÚSICA

A tecnologia veio para nos ajudar, os novos avanços em todos os campos, inclusive na música, permitiram que nós chegássemos onde nunca imaginaríamos. Grandes talentos da cena que compõe músicas extraordinárias não sabem sequer tocar algum instrumento. 

Mas esses avanços também permitem que pessoas criem músicas genéricas, através de projetos praticamente prontos, sem o amor, sem a emoção e sem pensar e transmitir algum sentimento, única e exclusivamente com o objetivo de alcançar o status e o sucesso, e isso é algo que tira toda a essência e a riqueza da nossa cena. E é aí que falta o fator HUMANO, deixamos as máquinas trabalhar totalmente por nós sem se preocupar no verdadeiro objetivo de uma música: traduzir sentimentos em forma de som.

A tecnologia deve ser usada sim, desde que a controlemos e não deixando que a nos controle.

APESAR DE TUDO, SOMOS HUMANOS

O contraste entre humanos e robôs foi um tema recorrente no trabalho dos Daft Punk durante toda a sua carreira. O filme Tron: Legacy no qual fizeram a trilha sonora trata de humanos literalmente controlados por computadores e presos em um mundo digital. O álbum que veio após “Human After All” é quase exatamente o oposto deste. 

Em vez de fazer os humanos parecerem robóticos, eles tentaram fazer os robôs soarem humanos. A primeira música, “Give life back to music”, segue a mensagem de “Robot Rock”, nela, eles tentam encontrar um estilo que soa humano e moderno. De uma maneira genial, eles mostram um caminho para tornar a sociedade um pouco menos robótica. Por que apesar de tudo… somos humanos!