Indie dance e o caos cultural

FRANKENSTEIN ARTÍSTICO

Tudo deve ter um começo… e esse começo deve estar ligado a algo que veio antes… A invenção, deve-se admitir humildemente, não consiste em criar do vazio, mas do caos; os materiais devem, em primeiro lugar, ser proporcionados: eles podem dar forma a substâncias escuras e disformes, mas não podem dar vida à própria substância”. 

A invenção consiste na capacidade de apreender as capacidades de um sujeito e no poder de moldar e modelar as ideias que lhe são sugerida” 

Nesta citação, Mary Shelley, autora da famosa obra “Frankenstein”, descreve seu processo criativo em termos de imitação; a ideia de que “os materiais devem, em primeiro lugar, ser adquiridos” sugere que a invenção surge pela reutilização do que foi feito antes, mas de uma nova maneira.

O renomado romance de Mary Shelley foi escrito em 1816, o “Ano sem Verão”, um período na história onde o planeta registrou as menores médias de temperatura entre os anos 1766 e 2000, o que resultou em grande escassez de alimentos em todo o Hemisfério Norte, e ainda assim, ela foi capaz de criar luz em meio ao caos

Mas aqui estamos falando de Indie Dance, o que isso tem a ver com algo que foi dito há tantos anos, em um período tão caótico da humanidade? 

Indie Dance, uma interseção entre a Dance Music, Rock, Punk, Funk, Disco e o que mais você desejar colocar nessa mistura. A classificação desse gênero pode não ser algo muito definido e satisfatório, mas afinal, a arte é para ser? Talvez o melhor caminho para buscar uma concretização desse caos seja falarmos um pouco também de outros gêneros com classificações igualmente imperfeitas e que andam lado a lado. 

Post-Punk, Disco not Disco, Indie Disco, Alternative Dance e Punk Funk. Estes são alguns dos principais exemplos de rótulos que se encaixam debaixo do abrangente guarda-chuva chamado Indie Dance. Pode-se dizer que o estilo no qual estamos abordando neste texto não é exatamente um gênero musical e sim uma camada que comporta muitas outras sonoridades distintas, mas com uma coisa em comum: a caótica reciclagem da arte. 

A dificuldade em buscar uma definição está justamente na consciente rejeição dos artistas quanto às restrições de gêneros: os subgêneros citados existem a partir de uma colisão de sons de diferentes épocas e culturas, seja misturando as batidas do House e Disco com a estética do Rock ou replicando o ritmo “funky” a partir de uma perspectiva Punk. 

Essa ideia de misturar a pista de dança com sons do Rock pode ser traçada a partir dos anos 80, no movimento chamado “80s Post-Punk” e na “New Wave”. Bandas como Liquid Liquid e ESG começaram a dar evidência à sonoridade que viria a emergir do Underground. 

Liquid Liquid é o exemplo ideal de como as ideias transcendem toda e qualquer barreira de gênero. Formada em 1980, o grupo fez parte da vanguarda nova iorquina da cena “New Wave”, com seus grooves típicos da Disco Music criados a partir de instrumentação ao vivo.  

Abaixo, podemos conferir alguns dos ritmos que marcaram o movimento: 

Poderíamos citar inúmeras outras faixas que já fizeram a pista dançar (ou fazem até hoje, seja através de samples, remakes, bootlegs e até mesmo em suas versões originais e atemporais), mas vamos nos conter a essas que exemplificam como era feita a construção da música, mesclando o andamento e timbres da música eletrônica com a essência do Rock. 

O QUE SE SEGUIU

O sufixo “indie” vem do termo “independente” que, como o próprio nome já diz, é uma produção focada na independência do artista e de sua obra, sem se prender aos moldes exigidos pelo mercado da música popular. 

Na medida em que a música tomou novos rumos, essa mistura de ritmos e timbres caminhou junto: novas sonoridades surgiram, possibilitando acrescentar novos ingredientes na imprecisa fórmula do Indie Dance. 

Leo Diniz contou para a gente aqui sobre alguns dos produtores que vêm puxando as rédeas desse movimento na atualidade. Talentosos nomes como Biesmans, Darlyn Vlys, Damon Jee, Marc Depulse, Rafael Cerato e WhoMadeWho se apropriam dos sons analógicos das décadas de 70 e 80, somados a ritmos e timbres da música eletrônica atual para criarem essa sonoridade única. 

Outros artistas caminharam por trilhos diferentes, porém seguindo a mesma filosofia – a mistura de sonoridades para a criação da música eletrônica. A banda norueguesa Lemaitre utiliza dos típicos vocais distorcidos do Indie Rock juntamente com instrumentos analógicos, como a guitarra e o piano, para flutuarem dentro do espectro da música eletrônica, porém passando mais pelo Future Bass e Trap, diferentemente dos outros artistas citados, que se voltam mais para o House. 

Jordan Edward Benjamin, conhecido pelo seu nome artístico Grandson, mistura Rock com o ritmo e timbres do Trap para criar uma sonoridade única, e somado a suas apresentações ao vivo, onde canta e toca sua guitarra, se mostra como mais um exemplo forte desse caos, além de abordar temas e realizar críticas sociais em suas composições, característica de subversão também muito forte nesse estilo. 

Enquanto alguns artistas exploram elementos de outros estilos dentro da música eletrônica, também existem bandas que exploram elementos da música eletrônica dentro de seus respectivos estilos, como é o exemplo dos grupos Foster the People, Coldplay, Bastille, Arctic Monkeys, Two Doors Cinema Club, Gorillaz, entre vários outros. 

Quando se trata de combinações dentro da música, as possibilidades tangem ao infinito, o que permite um leque gigantesco de sonoridades que se encaixam dentro do grande guarda-chuva que podemos chamar de Indie Dance. 

O PROMETEU MODERNO 

Na mitologia grega, Prometeu foi o responsável por criar, juntamente ao seu irmão Epimeteu, todos os seres mortais da Terra, e em um ato de subversão aos deuses, deu o fogo para a humanidade, o qual simboliza o conhecimento e a possibilidade da transformação da natureza. 

Na obra “Frankenstein”, de Mary Shelley, ela caracteriza como “Prometeu Moderno” aquele que rompeu paradigmas para dar vida à sua criação. E na música não é diferente, o Indie Dance é a criação dos nossos “Prometeus Modernos”, pessoas que ousaram romper regras para criar o novo. 

E, como dito anteriormente, a criação do novo não se dá a partir de um vácuo escuro, mas sim da reutilização, interpretação, modificação e imaginação a partir de algo que já existe. O caos cultural em que vivemos, proporcionado pelo fácil acesso a tecnologias e informações, permitiu a existência do caos que criou essa mistura heterogênea de culturas, sons e ritmos. 

Inicialmente, o termo “caos” pode soar como algo ruim, bagunçado e desordenado, mas na música e na arte é ele quem permite a criação. A arte é caótica. E sem o caos viveríamos num sistema ordenado, sem criatividade, cinzento e reto. 

Toda forma de arte é resultado desse movimento, porém o Indie Dance é a exemplificação perfeita de como pessoas que nunca se conheceram, ou nem mesmo viveram no mesmo período, podem colaborar entre si através do caos. Ritmos e melodias vindos de outros continentes, décadas e até mesmo séculos distintos, se juntando para formar uma única faixa, que rompe regras e paradigmas para a existência da criação final do caos, a música.